7 de agosto de 2010

Kick-Ass


(Kick-Ass - Quebrando Tudo, de Matthew Vaughn, 2010)

Adaptações para o cinema, até para os menos puristas, soa sempre como um problema. E enquanto um número cada vez maior de HQ’s alcançam as grandes salas de projeção, continuamos a observar algumas decepções indiscutíveis durante a última década. Se a gente resolve falar do encontro entre essas duas mídias altamente visuais, caímos por sobre a liberdade dos autores em cada uma: o cara da prancheta certamente possui mais liberdade que o cara atrás das câmeras. E não somente do ponto de vista criativo. O que explica direitinho o motivo das histórias em quadrinho terem perdido a sua essência, a sua densidade, para se tornarem produções bonitinhas, arrumadas e quase sempre acéfalas...

Kick-Ass é tudo o que as normas de ética e moral do cinema mainstream querem longe das telas: violência extrema e boa dose de cinismo. Para o nosso deleite e surpresa, com um texto excepcional de Matthew Vaughn e Jane Goldman (que se certificaram em fazer tudo dentro dos conformes, a fim de deixar a fita apresentável para um público amplo), temos o que seguramente posso chamar de uma das melhores adaptações de HQ para telona, além de um dos melhores filmes do ano. E há algumas diferenças entre as duas versões da saga de Dave Lizewske, o rapaz que resolve lutar contra o crime em uma roupa de mergulho . Assim como o (anti) herói de Watchmen, o rapazola percorre toda a cidade para manter a ordem e a justiça, mesmo que não tenha a menor habilidade e talento para isso. Vaughn e Goldman se permitiram alguns ajustes em todos os personagens, reduzindo de alguma forma a carga emotiva presente no original, mas sem comprometê-los -- como no caso da dulpa explosiva do filme, Big Daddy (Cage, hilário) e a pequena Hit Girl (Chlöe Moretz Grace, genial em um dos melhores personagem de todos os tempos), em quem os roteiristas confiam a missão de vingança contra a facção criminosa liderada por Frank D’amico (Strong, impagável). Outro grande lance do roteiro foi o de mostrar a via crucis dos gângsteres em pôr as mãos no suposto justiceiro mascarado, coisa que Millar não fez no original – e que permitiu ao diretor clarear um tom, jogando com a ironia dramática sem nunca trair o espírito underground e sádico do texto original.

Ainda que levante uma pergunta no mínimo curiosa em relação ao motivo de nunca ninguém ter se aventurado no mundo dos super-heróis (questão essa que é respondida logo na primeira aparição de Kick-Ass contra o crime), Vaughn não comete o erro de uma imersão ultra-realista. Se o universo de Kick-Ass se mostra por vezes cru e vulgar, o cineasta britânico se esforça para permitir que os seus protagonistas vivam suas fantasias, orquestrando cenas de ação absolutamente deslumbrantes onde o excesso é obrigatório, e a violência revela-se por vezes menos radical, apesar de incitada quase sempre por uma menina de 11 anos. Mas a essência da fita talvez seja muito mais pertinente, pois lida com o nascimento de um fenômeno popular na era das mídias sociais, ao mesmo tempo em que adota um número de elementos consideráveis presentes no imaginário coletivo mundial. E fica muito fácil constatar isso tudo quando vemos a cena de tiroteio frenético em primeira pessoa, com diálogos que nos remetem a Scarface e a cena final de O Retorno de Jedi; e claro, a homenagem clara à Kill Bill em uma sequência final brilhante, onde o diretor se permite invocar Tarantino adotando uma das trilhas de Ennio Morricone. Aliás, a trilha sonora é outro ponto fortíssimo, e nos oferece um cardápio variado que vai de Prodigy à Mozart. É também na trilha que Kick-Ass mostra todo o seu discernimento, sempre usando suas referências com uma intenção muito definida (como evocar Rossini num contexto absolutamente diferente do usado por Kubrick em Laranja Mecânica).

Sem dúvida alguma Kick-Ass será recebido por muitos como uma produção amoral, condenável e irresponsável -- com todos os méritos. Mas ao invés de enterrar nossas cabeças na areia, Vaughn e Goldman decidem assumir a responsabilidade por suas idéias, trazendo confiança aos espectadores, que se privam de analisar conceitos morais de bem e mal, e percebem o quão absurdo e inacreditável pode ser o entretenimento, sem que nos insulte a inteligência. No nível estético, a equipe do diretor britânico dá show: quer seja pela originalidade e fluidez das sequências de ação (fruto da ótima montagem) ou pela fotografia colorida de Ben Davis.

O resultado não poderia ser diferente: o melhor filme de super-heróis desde The Dark Knight, Kick-Ass faz jus ao nome, em todos os sentidos.