7 de junho de 2010

2046




(2046 - Os Segredos do Amor, de Wong Kar-way, 2004)

No final de In the Mood for Love, Chow sussurra um segredo que morre em um dos buracos da parede de um templo cambojano. Quando o vemos novamente em 2046, percebemos do que é capaz o poder transformador do amor -- da maneira mais negativa possível.

Nesse nosso reencontro, Chow parece ter sido atropelado por um caminhão: a recusa de um convite culmina no final de seu relacionamento com a bela Su, e o torna visivelmente inapto (num futuro próximo ou não) a permitir-se um affair mais sério novamente. E é aí que mora o paradoxo... Enquanto In The Mood for Love foi um mergulho de cabeça na história de um relacionamento único e ambivalente, 2046 nos entrega um Chow cafajeste, que se relaciona -- quase sempre da pior maneira -- com as mulheres. E são quatro belos exemplares: a 'dama de companhia' Bai Ling (a estonteante Zhang Ziyi, perfeita), a 'dançarina' Lulu (ou Mimi), a jogadora Su Lizhen (a que destrói o coração do nosso rapaz no início da fita) e a jovem Faye Wong, filha do dono do hotel (e que namora um menino japonês, aliás, namoro esse que entrega a Chow a única dica autruísta do filme). Agora mistura tudo e me diz se não temos aí o entrecho perfeito pra criar e defender teses e mais teses sobre este pequeno tesouro -- que ao exemplo dos outros filmes de kar-Way, não é facilmente digerido --, por horas a fio?

E já que eu cantei a pedra: acho que 2046 é menos uma sequência e muito mais uma releitura dos temas que envolvem In The Mood for Love. Muito semelhante ao modo em que o personagem de Tony Leung transforma suas experiências pessoais com as mulheres num futurista mas reconhecível homólogo ficcional para o livro que ele está escrevendo -- um jogo de repetição interminável.

2046 é um típico Wong Kar-way: visualmente acachapante (culpa da fotografia sublime do genial Christopher Doyle), com toda a irregularidade de continuidade e montagem que se tornam sua marca registrada, e a habilidade inigualável de acertar em cheio na trilha sonora (nos entregando entre outros, Vicenzo Bellini e Nat King Cole), complementando de forma precisa o que salta aos olhos do espectador. Ás vezes parece difícil conceber que em meio a todo esse aparente 'caos' audiovisual, o diretor chinês consiga se encontrar e fazer, inexplicavelmente, tudo funcionar. Ou quase tudo... O filme por vezes parece se alongar demais. O que tornou o meu desejo por um desenrolar mais dinâmico urgente, afinal de contas, tenho o direito de querer guardar um pouco do meu estado de humor romântico-melancólico pra próxima produção do diretor, não é mesmo? E Kar-way não gostaria de acabar com todo o meu estoque já escasso, de jeito nenhum.

Noves fora, ao menos tenho certeza de que, embora eu tenha dificuldade em dizer por onde 2046 me fisgou exatamente, fica claro que foi uma das viagens mais fascinantes que tive o prazer em fazer. Um estonteante e 'desorganizado' ensaio sobre amores perdidos, saudade, dor e lágrimas -- e que não poderia ser mais exepcionalmente belo.